Com algumas exceções, é proibido que, no Brasil, um consumidor adquira um carro diretamente com a fabricante. Isso acontece por conta de uma lei de 1979, que obriga a existência das concessionárias para intermediar a entrega do carro zero-km ao consumidor final em quase todos os casos.
As exceções mais famosas à regra são os descontos generosos dados a produtores rurais e a quem compra o carro via CNPJ. São dezenas de milhares de reais que podem ser economizadas até mesmo por quem é microempreendedor individual (MEI). Mas será que há pegadinha nisso?
Entendendo o desconto
A Lei 6729/79 tem quase meio século, mas ainda regula, com poucas atualizações, a forma que os carros são vendidos no Brasil. O texto obriga que, entre o fabricante e o consumidor, exista a concessionária intermediando o negócio.
Até a quantidade de concessionárias é regulada pelo texto, chamado de Lei Ferrari. Entre outras coisas, também fica proibido que concessionárias paguem valor diferente pelo mesmo veículo vindo da fábrica. Além disso, a montadora também é obrigada a tabelar o preço final do carro, definindo, assim, a margem de lucro do concessionário.
Mas há espaço para exceções, no modelo popularmente chamado de venda direta. Nessa situação, a concessionária só faz a ponte com a fábrica, de modo que o consumidor paga o mesmo que a loja pagaria, ao passo que o lojista recebe só uma comissão pelo intermédio.
Quem tem CNPJ pode praticar a venda direta, mas as fabricantes não são obrigadas a oferecer todo o catálogo nesse sistema. “A montadora controla o desconto ao definir a diferença entre o preço de venda ao concessionário e o preço de venda ao consumidor final”, explica um lojista da Stellantis no interior de Minas Gerais.
“Há um equilíbrio, uma diplomacia, ao definir quais carros serão priorizados na venda direta e quais ficam no varejo, onde as concessionárias lucram mais”, completa.
Truque do MEI?
Para avaliar se a venda direta é uma boa, quem tem um CNPJ deve saber que também há contrapartidas.
A principal delas é que o comprador deve manter o veículo por, no mínimo, 12 meses. Caso não cumpra esse resguardo, fica sujeito a sanções que variam conforme o estado. Mas o exemplo de uma Fiat Titano Ranch mostra que, ainda assim, pode compensar.
Para as pessoas físicas, a picape média sai por R$ 259.990, ao passo que, na venda direta, ela custa R$ 205.390 (21% de desconto). Se duas Titano forem compradas hoje — sendo uma via CPF e outra via CNPJ —, ambas terão o mesmo valor de mercado daqui a 12 meses: cerca de R$ 220.000, segundo a Tabela Fipe.
Caso a pessoa física venda sua Titano, terá “prejuízo” de R$ 39.990. A pessoa jurídica, por outro lado, lucraria R$ 14.610. Essa discrepância é o que torna a venda direta tão atrativa, e a Receita Federal criou um método para tentar “punir” quem usa o CNPJ para especular sem atrapalhar quem realmente aproveita o desconto para desenvolver a atividade econômica.
Funciona da seguinte forma: para fins contábeis, deve ser calculada uma depreciação de 1/5 do valor de venda direta a cada ano, explica a contadora Laís Narciso. Se o carro for vendido acima desse valor hipotético, incide um imposto de 15% na diferença.
No exemplo da Fiat Titano para CNPJs, o valor contábil da picape após 12 meses será de R$ 164.312. Logo, se a revenda ocorrer a R$ 220.000, o Fisco recolherá R$ 8.353 em tributos. A matemática fica ainda mais complexa quando a venda direta é de um carro com pouca desvalorização e a revenda para um segundo dono ocorre após alguns anos.
É o caso do Toyota Corolla GLi 2025 no exemplo abaixo (que desconsidera a inflação):
Preço de varejo: R$ 158.490
Preço de venda direta: R$ 129.961
Desconto: R$ 28.529
Com base na desvalorização média do modelo, daqui a cinco anos o Corolla GLi 2025 custaria cerca de R$ 123.000. Entretanto, seu valor contábil para a Receita Federal será igual a zero, já que a depreciação é linear (diminui-se 1/5 do valor original a cada ano.
Isso significa que a pessoa jurídica pagará 15% de imposto sobre o valor que revender o carro, a título de imposto sobre ganhos de capital. No exemplo do Corolla, seriam R$ 18.450.
No fim das contas, a economia do CNPJ frente ao CPF seria de R$ 10.000 aproximadamente. Considerando que uma pessoa tenha aberto MEI somente para usufruir do desconto, ela também gastaria cerca de R$ 900 por ano só para manter o serviço.
Futuro incerto
O advogado tributarista Otávio Massa já explicou que o objetivo do MEI é dar formalidade aos trabalhos até então considerados informais, geralmente realizados por profissionais autônomos. Por isso, se cadastrar como MEI sem ser, de fato, um microempresário pode ser considerado fraude e acarretar sanções legais e tributárias.
Além disso, as condições impostas pela Lei Ferrari são cada vez mais criticadas, e a Procuradoria-Geral da República foi ao Supremo Tribunal Federal questionar o texto. No entendimento da PGR, as regras são excessivas e violam princípios que estão na Constituição, como os “da livre concorrência, da defesa do consumidor e da repressão ao abuso de poder econômico”.
“A Lei Ferrari foi aprovada numa época marcada pela intervenção do Estado para beneficiar setores específicos da economia, com o objetivo de proteger concessionárias de automóveis do poder econômico das montadoras”, explica o órgão.
O questionamento segue em tramitação no STF, que eventualmente julgará se o texto — promulgado no contexto socioeconômico da Ditadura Militar — deve ser alterado para se adequar à atualidade.