Está em julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) um tema que mexe com a autonomia reprodutiva no Brasil: a idade mínima para a realização de cirurgias de vasectomia e laqueadura.
Atualmente, apenas pessoas com mais de 21 anos ou com pelo menos dois filhos vivos podem passar pelos procedimentos. A nova ação, que foi protocolada pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), argumenta que o Estado não deve interferir no planejamento familiar e defende a redução da idade mínima para 18 anos, garantindo que a única exigência para a esterilização voluntária seja a capacidade civil plena.
A legislação em análise é a Lei do Planejamento Familiar (Lei nº 9.263), sancionada em 1996. Originalmente, ela estabelecia requisitos como idade mínima de 25 anos ou pelo menos dois filhos vivos, autorização do cônjuge e um intervalo de 60 dias para aconselhamento antes da cirurgia. Em 2022, entretanto, uma nova lei reduziu a idade mínima e eliminou a exigência de autorização do cônjuge, mantendo o prazo de 60 dias para reflexão.
Dados do Ministério da Saúde indicam que, após essas mudanças, o número de laqueaduras aumentou de 106,5 mil em 2022 para 197,6 mil em 2023. Em 2024, ultrapassou 200 mil, incluindo cirurgias feitas logo após o parto. No mesmo ano, 85.675 vasectomias foram realizadas.
Ainda assim, um estudo anexado pelo PSB revelou dificuldades no acesso aos procedimentos pelo SUS. A pesquisa, realizada em seis capitais brasileiras – São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Cuiabá e Palmas -, apontou que, seis meses após a solicitação, apenas 25,8% das mulheres e 31% dos homens conseguiram realizar a cirurgia. Durante esse período de espera, 8% das mulheres engravidaram.
Para a antropóloga Debora Diniz, professora da UnB (Universidade de Brasília) e referência nas áreas de igualdade de gênero e direitos reprodutivos, a idade mínima é apenas um aspecto dentro de um debate mais amplo que precisa ser feito. “Ainda que isso possa representar um avanço na autonomia corporal, também reflete a falta de acesso a outros métodos contraceptivos seguros e a baixa participação dos homens no planejamento reprodutivo”, diz.
De acordo com o conselheiro Ademar Carlos Augusto, o CFM (Conselho Federal de Medicina) desconhece os critérios técnicos utilizados para a redução da faixa etária e não foi consultado sobre o tema.
Os argumentos
Defensores da exigência da idade mínima argumentam que a esterilização irreversível é uma decisão que requer maturidade e que a imposição de um limite etário protege indivíduos de escolhas impulsivas que podem ser posteriormente lamentadas.
Na avaliação de Paulo André Moreira Pedrosa, mestre em direito pela FGV (Fundação Getulio Vargas) e presidente da Comissão de Direito Médico da OAB/SP Subseção Santo Amaro, a limitação de idade para exercício de direitos não é inconstitucional, ocorrendo em outras situações, como por exemplo a idade mínima para aquisição e porte de arma (25 anos). “É uma forma encontrada pelo Estado para garantir o exercício consciente e informado”, diz.
Vale lembrar que, ainda que a vasectomia possa ser revertida, não há garantia de sucesso no procedimento. “Além disso, a reversão envolve custos elevados, não é coberta pelos planos de saúde e exige profissionais altamente qualificados e instrumentação especializada”, diz João Brunhara, urologista do Hospital Albert Einstein e cofundador da healthtech Omens.
No caso da laqueadura, embora também seja viável revertê-la, esse procedimento não é recomendado. “Ele aumenta os riscos de gestação ectópica tubária, acarretando riscos à saúde da mulher e possíveis abortos do embrião”, afirma a ginecologista Graziele Cervantes, mestre da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Já os críticos da regra de idade mínima consideram que ela fere a autonomia individual e o direito de escolha sobre o próprio corpo. Muitas pessoas que decidem não ter filhos enfrentam barreiras burocráticas, mesmo quando estão seguras de sua decisão. Algumas relatam dificuldades em acessar o procedimento, mesmo cumprindo os requisitos legais, devido à resistência de profissionais de saúde.
Esse foi o caso da estudante Marina Santos, 27, que, desde os 22 anos, tinha certeza de que não queria ter filhos. Em 2022, enfrentou uma série de negativas de médicos que insistiam que ela poderia se arrepender no futuro. “Ouvi inúmeras vezes que eu era jovem demais para tomar essa decisão, que eu deveria esperar até ter pelo menos um filho ou que meu futuro marido poderia querer crianças”, conta.
Marina teve que passar por diversas consultas até encontrar um profissional disposto a respeitar sua escolha, e o procedimento foi realizado ano passado.
Depois de tanto desgaste emocional, foi um alívio enorme, mas não deveria ter sido tão difícil. Passei anos tendo que justificar uma escolha que, se fosse o contrário – ou seja, se eu quisesse engravidar -, ninguém questionaria.
Marina Santos, estudante
A advogada Patricia Matos, 38, também enfrentou desafios antes de conseguir realizar a esterilização voluntária. Ela desejava fazer o procedimento muito antes dos 32 anos, idade em que finalmente conseguiu realizá-lo. “As experiências que tive com outros métodos contraceptivos foram ruins. Se tivesse feito antes, provavelmente teria uma qualidade de vida melhor”, relata
Desde que realizou o procedimento, Patricia percebe impactos positivos na saúde, no bem-estar e na vida profissional. Diagnosticada com endometriose, ela notou uma grande redução dos sintomas e do fluxo menstrual após a laqueadura. Além disso, a ansiedade e os episódios de tocofobia (medo intenso de engravidar) deixaram de fazer parte da sua rotina. “Depois do procedimento, estou em paz para buscar meus objetivos profissionais e meu projeto de vida”, diz.
A experiência também motivou sua trajetória acadêmica: após a cirurgia, decidiu fazer um mestrado para estudar o direito reprodutivo de não ter filhos e entender por que o tema ainda gera tantas controvérsias. Sua dissertação resultou no livro “O Direito de Não Ter Filhos – A Autodeterminação Reprodutiva das Mulheres no Brasil após a Lei do Planejamento Familiar (Lei nº 9.263/96) e a Justiça de Gênero”.