Como você se prepararia para uma luta olímpica, aquela que vale medalha? Bia Souza, a primeira campeã olímpica do Brasil em Paris, abriu seu tablet, conectou no Wi-Fi do ginásio olímpico e abriu a Netflix.
Quem viu a cena não soube dizer se ela estava maratonando Grey’s Anatomy ou The Office. Mas o que fica é que a inspiração valeu ouro em uma das performances mais impressionantes de um judoca brasileiro em Olimpíadas.
Bia, número 5 do ranking mundial, era favorita para a medalha, com pódio nos mundiais de 2021, 2022 e 2023, mas a chave que pegou não era nada fácil. Se tudo corresse sem zebras, ela enfrentaria três das quatro primeiras colocadas da lista. Três das quatro melhores judocas do planeta em sua categoria.
Só que, para Bia, isso não importa muito. Sem esboçar nem mesmo um sorriso, primeiro ela bateu a sul-coreana Hayun Kim (4 do mundo), depois a francesa Romane Dicko (1) e, na final, a israelense Raz Hershko (2).
Quando soltou a emoção, sorriu e chorou, ela já era campeã olímpica.
Eu faço uma audição seletiva [quando ligos as séries durante os torneios]. Consigo me concentrar totalmente ali na luta, no meu momento. Estou focada em mim, no que eu quero fazer, no que eu sei fazer. E era Grey’s Anatomy, já é a sétima vez que eu vejo. Indico para todo mundo.
Bia Souza, acabando com a dúvida sobre o que ela estava assistindo
A construção de uma rainha de gelo
A calma de Bia em sua estreia olímpica impressionou. Como é possível estar tão serena em um palco tão importante? Segundo Sarah Menezes, o ritual das séries ajuda. “Ela é tranquila e adora assistir a várias séries entre uma luta e outra. É legal para mudar o foco um pouquinho, descansar. Mas o aquecimento dela é perfeito”, avisa Sarah Menezes, técnica da seleção.
O maior teste aconteceu na semifinal. Bia entrou no tatame para enfrentar Dicko, número 1 do mundo e campeã mundial, que lutava empurrada pela torcida francesa fanática no dia mais concorrido do judô na Olimpíada. Parecia que quem estava em casa era a brasileira, que anulou uma rival que não vencia há quatro anos e finalizou o combate sem mudar o semblante.
Essa coragem contra alguém que deveria ser favorito é justamente o que caracteriza a nova campeã olímpica. O judô brasileiro sabe disso desde 2018, quando Bia, uma jovem com então 20 anos, bateu um bicho-papão.
Idalys Ortiz tem quatro medalhas em Olimpíadas, oito em Mundiais e foi campeã pan-americana 18 vezes. Antecessora de Bia na categoria (e até Bia, a maior judoca peso-pesado que o Brasil já tinha produzido), Maria Suelen Atltheman, que foi três vezes ao pódio em Campeonatos Mundiais, lutou contra a cubana 19 vezes e só venceu uma vez. Bia bateu Ortiz logo em seu segundo confronto.
O conselho da rival
Antes da vitória que confirmou que Bia era a nova estrela do judô brasileiro, veio uma derrota. Foi em 2018, na final de um Campeonato Pan-Americano.
“Era meu primeiro Pan sênior. Perdi e estava chorando horrores. Ela sentou do meu lado e falou assim: ‘Calma, menina, não precisa disso. Você é nova, você é extremamente forte e eu acredito que um dia você vai chegar. Então, não se preocupe com a derrota de hoje. Foca em melhorar para a próxima. E eu achei incrível”, lembra Bia.
Ortiz já era uma lenda multimedalhista e campeã. “Eu era uma criança ali e ela era uma das inspirações, uma das adversária que eu sempre tinha que estudar”.
A espera foi grande?
Muito se falava sobre quanto tempo o Brasil demoraria para subir ao primeiro lugar no pódio. A delegação verde-amarela bateu na trave algumas vezes e Bia levantou o ouro apenas no nono dia das Olimpíadas em Paris.
Muito tempo? Nem tanto. Nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021, Ítalo Ferreira, do surf, foi ouro no sexto dia de competição. Nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, Rafaela Silva, também judoca, ganhou a medalha dourada no quinto dia dos jogos.
As projeções feitas antes dos Jogos, de que o Brasil ganharia cerca de cinco medalhas de ouro, segue viva. E, para o COB, o resultado de Bia abre o caminho para outras conquistas. “Acho que, sem dúvida nenhuma, dá um alívio para toda a missão, para abrir caminhos para a gente emplacar os outros ouros que, com certeza, virão”, comentou Ney Wilson, diretor de esportes de alta performance do COB.
A cara de uma geração
Beatriz quase foi para a Olimpíada há três anos. Lutou até o último momento pela vaga brasileira, mas quem foi para Tóquio foi a veterana Maria Suelen —uma lesão no joelho no Japão, causada por Romane Dicko, fez com que ela se aposentasse e, depois, virasse a técnica de Bia.
Naquela época, a nova campeã olímpica era “apenas” medalhista do Mundial que tinha acontecido naquele ano e o jeito era insistir. Em Paris, mostrou porque é considerada a maior revelação do judô brasileiro dos últimos dois ciclos olímpicos.
Enquanto Sarah Menezes se aposentava e Mayra Aguiar e Rafaela Silva se preparavam para suas últimas Olimpíadas, nos últimos cinco anos Bia conquistou três medalhas em Campeonatos Mundiais (uma prata e dois bronzes), duas em Jogos Pan-Americanos e foi campeã continental quatro vezes.
Com seu ouro, as mulheres brasileiras passaram os homens no quadro de medalhas olímpico. São agora três ouros (com os de Sarah, em 2012, e Rafaela, em 2016), contra dois dos homens (Aurélio Miguel, em 1988, e Henrique Guimarães, em 1992), No total, o Brasil foi a 27 pódios olímpicos (5 ouros, 4 pratas e 18 bronzes). Mayra, com três bronzes, já é a maior medalhista brasilera em número de pódios.
A cada dia a gente está mostrando mais a força da mulher. A força que a mulher tem diariamente. Colocando o nome no topo. E eu acho que é só mais um passo para o nosso crescimento. Para a nossa evolução. E como inspiração para todas as mulheres.”
Bia Souza
Família ficou no Brasil
Bia perdeu a avó, Brecciolina, em junho e, no lugar de ser render ao luto paralisante, resolveu treinar. “Ela quis estar no tatame porque ali, pelo menos, tinha gente para fazer companhia”, conta Maria Suelen, sua técnica.
Outra decisão foi manter a família no Brasil. Os pais ficaram em Peruíbe, cidade natal da medalhista. O irmão e a mulher, no Rio de Janeiro. Beatriz Aleixo, cunhada de Bia, disse que a família estava reunida desde às 5 da manhã na expectativa para a luta. “Oramos muito, passamos muita energia positiva. A gente sabe o que isso significa para ela. Quando ela ganha, nós vencemos tambem”.
Em família, a cunhada diz que a Bia não gosta muito de falar de judô. “Fui na casa dela há umas duas semanas. Perguntei como estava se sentindo e ela respondeu que estava preparada. Sabia que tinha trabalhado e se preparado o suficiente para ter chegado até os Jogos Olímpicos. Foi algo bem especial”, disse.
E completa: “É sensacional ela ser o primeiro ouro do Brasil.”
O início no judô
Beatriz começou a praticar judô aos sete anos —era uma criança espevitada, cheia de energia que enlouquecia os pais. “Eu era daquelas que davam trabalho demais, era muito agitada. Fazia dança, natação, mas continuava botando fogo nas coisas, pintando o cabelo do nada em casa e perturbando os vizinhos. Precisava ocupar todo o meu tempo livre. Me encantei pelo judô já no primeiro treino”, conta.
Bia é a caçula de duas filhas e a única a seguir os passos do pai no judô. Aos 15 anos, deixou a barra da saia da mãe, em Peruíbe, no litoral paulista, para encarar uma rotina extenuante em São Paulo: acordava às quatro, cruzava a cidade de trem, metrô e ônibus para chegar à escola às sete. Ao meio-dia, precisava estar no clube para treinar. Ficava por lá até a noite, quando voltava para a república em que morava com mais 14 atletas.
“Fui contratada pelo Palmeiras, e meus pais me deram todo o apoio. Eu tinha uma rotina insana: acordava às quatro, pegava um trem na Lapa, zona oeste de São Paulo, onde morava; depois, o metrô e, então, um ônibus até a escola, que fica na zona leste. Minha aula começava às sete. Depois, corria para o clube, treinava durante toda a tarde; chegava em casa à noite e precisava cozinhar, não tinha nada pronto”, relembra.