Para especialista, medida desconsidera realidade de quem vive sem conexão digital.
Alexandre Moraes, advogado especialista em direito penal, defende a digitalização das bulas de medicamentos, mas critica a proposta de extinguir totalmente a versão impressa. Segundo ele, mais de 25% da população brasileira ainda não tem acesso confiável à internet, o que comprometeria a segurança dos pacientes.
Moraes ressalta que o custo da bula em papel é muito baixo e que a medida, aprovada em regime de urgência, foi mal compreendida pelos parlamentares. Para ele, é essencial equilibrar tecnologia e acessibilidade, mantendo as versões impressas como garantia de informação segura e acessível.
Os diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovaram um projeto-piloto para a implementação da bula digital de medicamentos no Brasil.
De acordo com o diretor relator, Daniel Pereira, a proposta visa modernizar e digitalizar o setor da saúde, acompanhando uma tendência global. “Esta é uma oportunidade para melhorar a acessibilidade e a personalização das informações de saúde”, declarou. O relator assegurou que não haverá qualquer redução nos direitos dos consumidores.
Projeto da bula digital
O projeto permanecerá em vigor até 31 de dezembro de 2026. As informações coletadas e monitoradas nesse intervalo devem subsidiar a elaboração futura da regulamentação definitiva sobre o assunto.
A bula digital corresponde a uma versão eletrônica da bula de medicamento, acessível através da leitura de um código de barras bidimensional (QR Code) presente nas embalagens. Além disso, a bula digital possibilita o acesso a conteúdos extras, como vídeos, áudios e outras orientações que auxiliam no correto uso do medicamento.
Para a Anvisa, a bula digital de medicamentos no Brasil traz mais praticidade e acessibilidade às informações sobre os remédios, facilitando a vida dos consumidores na hora de tirar dúvidas e garantindo mais segurança no uso. Com a bula digital, é possível ter fácil acesso às instruções de uso, posologia, efeitos colaterais e contraindicações de forma rápida, sem a necessidade de lidar com papéis físicos.
Benefícios da bula digital
Além disso, a bula digital contribui para a preservação do meio ambiente, reduzindo o uso de papel e impactos ambientais negativos. “Uma ação sustentável que está alinhada com as tendências globais de responsabilidade social”, no parecer da Agência.
Quais tipos de medicamentos terão permissão para usar a bula digital?
- Amostras gratuitas de medicamentos em embalagens: a distribuição das amostras grátis só pode ocorrer através do profissional de saúde ao paciente durante consulta, mediante prescrição e orientações específicas para cada tratamento;
- Medicamentos destinados a instituições de saúde, com exceção de farmácias e drogarias: venda autorizada em hospitais, clínicas, ambulatórios e serviços de atenção domiciliar, por exemplo, foram escolhidos por serem utilizados sob supervisão de profissionais de saúde;
- Medicamentos de uso governamental, acondicionados em embalagens com a identificação do Ministério da Saúde: a atual legislação já dispensa, em grande parte, a necessidade de bulas impressas nas embalagens. Assim como os MIPs, há uma significativa redução na disponibilidade de bulas físicas, conforme a RDC 769, de 12 de dezembro de 2022;
- Medicamento isento de prescrição (MIP), comercializados em embalagens múltiplas: são artigos de baixo risco que, de acordo com as leis vigentes, já podem ser colocados à disposição nas prateleiras das farmácias, em embalagens primárias (como blister ou cartela de comprimidos), sem a inclusão de bulas. Se o cliente desejar a bula física, pode solicitar na loja.
Bula impressa
As bulas impressas devem ser disponibilizadas quando solicitadas por pacientes ou profissionais de saúde. A regra aprovada determina ainda que os locais que vendem medicamentos informem aos clientes, por meio de comunicação visual, a opção de solicitarem a bula impressa, com a seguinte frase:

O debate sobre a bula eletrônica teve início com a promulgação da Lei nº 14.388/2022. A matéria, originária do Projeto de Lei nº 3.846/2021, autoriza a autoridade sanitária a determinar quais medicamentos terão apenas uma versão de bula.
Na prática, a preocupação referente à eliminação da bula impressa de medicamentos dentro da embalagem tem crescido desde o final de 2021. Isso porque o PL foi aprovado em caráter de urgência sem o devido debate com a sociedade. E foi esse PL que resultou na promulgação da Lei 14.338. Vale ressaltar que a legislação consente a manutenção da bula impressa, deixando, no entanto, à Anvisa a decisão final sobre quais medicamentos seguirão tal modalidade.
A proposta aprovada pela Anvisa passou por consulta pública entre os dias 20 de dezembro de 2023 e 19 de março de 2024.
Inicialmente, a Anvisa defendeu a permanência das bulas impressas, considerando-as fundamentais para a segurança e informação dos pacientes. Porém, de forma surpreendente, a agência alterou sua posição, mesmo diante do resultado da consulta pública que demonstrou amplo apoio à manutenção das bulas impressas.
Monitoramento de dados
A Lei da Bula Digital não apenas regulamenta a transição, mas também abre caminho para a disponibilização de dados estruturados. A Lei 14.338/2022 estipula que os laboratórios devem possuir um sistema para criação de um mapa de distribuição de medicamentos, detalhando os quantitativos de comercialização e distribuição de cada lote, bem como os destinatários das remessas. A norma determina que a bula impressa só pode ser dispensada em situações a serem definidas pela Anvisa.
Uma pesquisa do Datafolha especifica que 58% dos consumidores, com 16 anos ou mais, considera a bula impressa dentro dos medicamentos algo muito importante. Da parcela da população que considera o item como “importante”, está o percentual de 84%. Ao escolher entre papel e digital, 45% gostariam de contar com as duas opções. Contudo, se tivesse que optar por um lado, 42% considera a bula impressa, contra 11% dos indivíduos, que preferem a bula digital.
A esse fator soma-se a percepção da maioria (66%) que já teve problemas com o próprio smartphone ou com o acesso a internet. Isso sem contar as pessoas que dizem não contar com celular com internet, dispositivo mais indicado para o consumidor ter acesso a bula digital, via QR Code. O levantamento ainda aponta que 83% das pessoas considera que sem a bula impressa, familiares ou pessoas próximas poderiam ter problemas de saúde. O motivo seria a falta de informações sobre o medicamento.
Lei Orgânica da Saúde
Na proposta de regulamentação do tema, o diretor relator Daniel Pereira, comenta que, no Brasil, conforme estabelecido pela Lei Orgânica da Saúde, é garantido aos usuários do sistema de saúde o direito à informação. Entretanto, assegurar o “acesso” e o “direito” à informação vai além de apenas disponibilizá-la materialmente, incluindo a necessidade de garantir sua compreensão.
No caso das bulas de medicamentos, os principais destinatários são os pacientes. “Portanto, para que as informações contidas na bula sejam acessíveis a eles, é fundamental que estejam adaptadas às suas necessidades informacionais e ao nível de instrução dos diferentes usuários”.
O processo de digitalização das informações sobre medicamentos é longo e gradual, com etapas que podem variar de acordo com os países. Discussões promovidas pela Federação Internacional das Associações e Produtores Farmacêuticos (IFPMA), representante global das empresas farmacêuticas de pesquisa e suas associações, apontam a existência de 5 etapas rumo à implementação de um sistema maduro de digitalização de informações sobre medicamentos.
Bulário eletrônico
Em um contexto nacional, o Brasil venceu a etapa 1 com o lançamento do Bulário Eletrônico em 2007, disponível no Portal da Anvisa, possibilitando o acesso da população e dos profissionais de saúde às bulas dos medicamentos.
Em segundo lugar, está a disponibilização das bulas digitalmente, a qual foi regulamentada pela RDC nº 768, de 12 de dezembro de 2022, permitindo que as empresas utilizassem meios digitais para disponibilizar informações aprovadas pela Anvisa nas embalagens dos medicamentos, de forma facultativa até o momento. Daniel Pereira explica que, neste momento, o Brasil está avançando em direção à etapa 3, que engloba discussões sobre flexibilidades intermediárias para reduzir a exigência de bulas impressas.
Por consequência, a etapa 4 prevê a remoção definitiva da necessidade de bulas impressas. E, por fim, a etapa 5 representa a consolidação de uma plataforma eletrônica estruturada e integrada a outros sistemas.
Bula Digital pelo mundo
A Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos publicou, há alguns anos, uma proposta de regulamentação sobre a distribuição eletrônica de medicamentos prescritos, realizando uma audiência pública sobre o assunto. Além disso, a agência tem trabalhado com o Health Level Seven (HL7) no desenvolvimento de normas estruturadas para a rotulagem eletrônica visando o intercâmbio de informações sobre produtos.
Em março de 2023, a FDA divulgou um guia com orientações para apoiar a implementação dos Padrões de Identificação de Medicamentos (IDMP) da International Organization for Standardization (ISO) para substâncias, terminologias e outras informações ao longo do ciclo de vida global de desenvolvimento de medicamentos. O objetivo desses padrões é melhorar a precisão, integridade e consistência na troca de informações sobre medicamentos entre as partes interessadas. A transição da rotulagem em papel para a eletrônica nos EUA requer alterações legislativas para remover a linguagem sobre folhetos aprovados.
Abordagem eletrônica
Em 2018, Bélgica e Luxemburgo iniciaram um programa piloto conjunto para implementar a bula eletrônica destinada a pacientes. O projeto, vigente até 2025, busca demonstrar que essa abordagem eletrônica é equivalente às informações fornecidas em papel aos pacientes e profissionais de saúde hospitalar sobre o uso seguro e eficaz de medicamentos.
Em 2019, o Japão alterou a Lei de Garantia de Qualidade, Eficácia e Segurança de Produtos. Desde então, produtos farmacêuticos e dispositivos médicos contam com a bula digital. A mudança exigiu que as empresas farmacêuticas substituíssem a bula física por uma versão eletrônica. A medida começou a vigorar em 1º de agosto de 2021, com um período de transição de dois anos.
Primordialmente, no Canadá, a Health Canada anunciou uma implementação provisória de rotulagem eletrônica para medicamentos prescritos para uso humano. Ademais, a Austrália autorizou que produtos injetáveis administrados por profissionais de saúde não precisam mais ser acompanhados por cópias impressas das informações na embalagem. A decisão foi dada em setembro de 2023.
Por fim, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA), na União Europeia (UE), têm trabalhado para permitir o uso de informações eletrônicas sobre medicamentos. Eles estão desenvolvendo normas comuns e conduzindo um projeto piloto de acompanhamento financiado pela UE.
A Resolução da Anvisa que dispõe sobre projeto piloto com diretrizes transitórias para implementação da bula digital foi publicada no Diário Oficial da União de 12 de julho.